Corrupção: Como os EUA "viraram o jogo" contra a corrupção
No século 19, a falta de um funcionalismo público profissional favorecia o apadrinhamento nos EUA |
No século 19, a falta de um funcionalismo público profissional favorecia o apadrinhamento nos EUA.
Grandes projetos de infraestrutura manchados por corrupção; apadrinhamento político nos governos federal, estadual e local, bem como o uso de cargos públicos para obter ganhos privados e manter-se no poder.
O cenário acima poderia descrever a situação atual de diversos países do mundo - inclusive do Brasil -, mas se refere especificamente aos Estados Unidos do fim do século 19.
No período a partir de 1870, conhecido como “Gilded Age” (Era Dourada), o surgimento de uma sociedade mais urbanizada e industrializada e de novas fontes de riqueza nunca antes vistas, em um momento de rápido crescimento econômico nos EUA, evidenciou os altos níveis de corrupção política no país.
Seriam necessárias algumas décadas e a adoção de várias medidas de regulação para que o problema fosse controlado.
Apesar de ressaltarem que a corrupção não foi totalmente erradicada nos EUA, analistas concordam que as reformas adotadas na virada do século 19 para o 20 foram essenciais para combater o problema e fazer com que o país hoje se situe entre aqueles com baixos níveis deste tipo de delito.
No Índice de Percepção da Corrupção de dezembro de 2014, divulgado pela Transparência Internacional, os EUA apareceram na 17ª posição entre 175 países, ao lado de Irlanda, Hong Kong e Barbados. O Brasil ficou em 69º lugar, ao lado de Bulgária, Grécia, Itália, Romênia, Senegal e Suazilândia.
Intolerância
Segundo analistas, nas décadas finais do século 19, práticas até então dominantes nos EUA, como clientelismo e apadrinhamento político, começaram a ser menos toleradas.
“Muitas práticas que simplesmente eram encaradas como normais em períodos anteriores da história americana passaram a ser vistas como problemas”, disse à BBC Brasil o historiador Alan Lessoff, professor da Illinois State University.
“O problema talvez não tenha sido que os EUA estavam ficando mais corruptos. Segundo vários historiadores, não houve necessariamente um aumento dos níveis de corrupção no período, talvez estivesse até diminuindo. Mas a intolerância em relação ao problema estava crescendo. E a capacidade de relatar (os casos de corrupção), também”, afirma Lessoff.
Especialistas listam vários fatores que contribuíam para a corrupção no período.
“Subornos, favoritismo e fraudes eram constantes em governos estaduais e locais”, disse à BBC Brasil o cientista político Michael Johnston, professor da Colgate University, em Nova York.
“Havia também a tendência de grandes empresas evitarem regulação ou 'comprarem' a regulação que lhes fosse mais favorável”, afirma Johnston.
Senadores
Os EUA figuram em 17o lugar no ranking dos países menos corruptos do mundo
A falta de um funcionalismo público profissional favorecia a prática de apadrinhamento político tanto no nível federal quanto nos Estados e municípios americanos.
“Você não precisava fazer um concurso. Apenas se dirigia ao chefe do departamento, ou ao prefeito, governador, presidente dos EUA, e pedia um emprego”, disse à BBC Brasil o historiador Richard Schneirov, professor da Indiana State University.
“A corrupção que hoje ocorre por trás dos panos ocorria abertamente na época. E não era chamada de corrupção, mas simplesmente de política”, salienta Schneirov.
O fato de que até até a segunda década do século 20 os senadores americanos não eram eleitos pelo público, também é citado.
“Você tinha esses empresários muito ricos e poderosos distribuindo dinheiro nos Estados para conseguirem serem nomeados senadores”, observa Johnston.
A especialista em corrupção Susan Rose-Ackerman, professora de Direito e Ciências Políticas da Universidade de Yale, lembra que grandes projetos de infraestrutura, como a construção de ferrovias e portos, estavam em andamento na época e podiam ser vulneráveis à corrupção.
Rose-Ackerman destaca também que a burocracia do governo federal se concentrava basicamente na alfândega e nos correios, ambos marcados por diversos casos de corrupção.
Mobilização Popular
Segundo os analistas, a mobilização popular e o papel da imprensa, com os chamados muckrackers, jornalistas investigativos da época que tentavam expor os escândalos de corrupção, foram cruciais para mudar essa situação.
“Havia um movimento de cidadãos muito ativo, o Movimento Progressista, organizado por pessoas que estavam tentando fazer com que o governo se tornasse mais limpo e honesto”, diz Rose-Ackerman.
“Em algumas grandes cidades, eles se aliaram a setores da comunidade empresarial que reclamavam de altos impostos”, afirma.
Muitas reformas foram motivadas, em parte, por escândalos. Rose-Ackerman cita o assassinato do presidente James Garfield, em 1881, como um dos fatores que levaram à reforma do serviço civil, que na década de 1880 profissionalizou o funcionalismo público.
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A primeira agência reguladora de grandes corporações nos EUA surgiu em 1887
O assassino, Charles Guiteau, cometeu o crime após ter seus pedidos de emprego negados pelo presidente.
“(O vice-presidente) Chester Arthur substituiu Garfield e o escândalo envolvendo o assassinato forneceu um certo incentivo para mudanças. Além disso, havia alegações de que o próprio Arthur estaria envolvido em corrupção, então ele se tornou um apoiador da reforma”, afirma Rose-Ackerman.
Regulação
Schneirov observa que, a partir do final dos anos 1880, consolidou-se também uma nova percepção de que não eram apenas "homens maus" (políticos) que causavam a corrupção, e sim grandes empresas, o que levou a esforços para maior regulação.
Em 1887, em resposta a diversos escândalos envolvendo a construção de ferrovias, incluindo pagamento de propinas, foi criada a Interstate Commerce Commission (ICC, na sigla em inglês), agência responsável pela regulamentação de ferrovias. Ampliada a partir de 1906 para abranger outros setores, a ICC foi a primeira agência a monitorar grandes corporações nos EUA.
Seguiram-se várias outras medidas para regular o setor bancário, o mercado de capitais, alimentos, medicamentos, em um movimento que se estendeu por décadas.
Apesar dos avanços, os EUA não eliminaram totalmente o problema, e ainda registram eventuais casos de corrupção. “Os americanos não sentem que a sociedade resolveu completamente o problema da corrupção”, avalia Lessoff.
“No Estado de Illinois, onde vivo, dois dos últimos quatro governadores (George Ryan e Rod Blagojevich) acabaram na prisão por casos de corrupção e um congressista da cidade em que vivo (Aaron Schock) renunciou no mês passado, em meio a um escândalo envolvendo financiamento de campanha e gastos particulares extravagantes”, ressalta.
“Nenhum país superou totalmente o problema. O que se vê é uma mudança de variedades mais visíveis e nocivas para outras menos visíveis”, complementa Johnston.
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O ex-governador de Illinois Rod Blagojevich foi afastado do cargo em 2009 e posteriormente preso após envolvimento em escândalo de corrupção.
Segundo analistas, entre os principais desafios atuais está o financiamento de campanhas políticas. Apesar de a Suprema Corte ter legalizado em 2010 contribuições sem limites de empresas e indivíduos por meio dos chamados Super PACs (comitês de ação política que não são ligados oficialmente a nenhum candidato ou partido, mas podem arrecadar fundos e fazer campanhas a favor ou contra candidatos ou causas), a decisão é polêmica.
“Só porque houve uma decisão legal não quer dizer que a população vá mudar sua definição do que é apropriado”, diz Rose-Ackerman. “(A decisão) não é relacionada diretamente com corrupção, mas é sobre a influência do dinheiro na política, o que é uma questão mais ampla que simplesmente propinas ou corrupção.”
Ao comparar a situação dos EUA com o Brasil, Johnston lembra que, nos EUA, o combate à corrupção levou mais de um século para surtir efeito. Ele vê avanços no Brasil.
“Nós fizemos progressos contra a corrupção, mas levou 150 anos”, diz. “Acho que no Brasil há razão para otimismo. O problema agora já não pode mais ser varrido para baixo do tapete.”
Por Alessandra Corrêa / BBC Brasil
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